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Donkey Kong Country e o destino trágico da humanidade


Decifrar ou construir o significado de uma obra é um dos desafios mais atraentes para os aventureiros que adoram mergulhar no infinito mundo da interpretação.

Aqueles que lançam o seu espírito nos mistérios da arte, devem, de antemão, conhecer os fundamentos da hermenêutica. O primeiro é a intertextualização: o sentido de um texto depende do conhecimento prévio de outros textos; o segundo é a inesgotabilidade do sentido, pois este é livre, mutável e infinito. 

Isso quer dizer, em termos práticos, que tão logo uma obra é posta no mundo, a sua significação deixa de ser propriedade exclusiva do seu criador e fica sujeita à ressignificação por toda coletividade de intérpretes. 

Nesse liame, boa parte das maiores obras da nossa curta história tem um traço em comum: o seu criador original teve o propósito consciente de estimular uma postura intelectual ativa dos seus destinatários. Para atingir esse fim, uma narrativa densa e surpreendente ou, por vezes, macabra e aterrorizante, foi escondida em alegorias e metáforas que exigem, além de atenção, amplo conhecimento preliminar daquele que se desafia nesse mergulho. 



Sherlock Holmes pode ser um grande professor do pensamento lógico e da ciência da dedução.

A linguagem do cinema é especialmente apropriada para o uso de alegorias. Por esta razão, permita ilustrar essa afirmação com dois dos inúmeros exemplos possíveis. 

O primeiro é o longa O Iluminado, dirigido por Stanley Kubrick. Quem assiste a essa obra, vivenciará um excelente terror psicológico. Quem a analisa, porém, poderá juntar as pistas da sua surpreendente narrativa oculta: uma alegoria aos conflitos indígenas durante a colonização dos Estados Unidos e uma crítica à história oficial dessa guerra, com suporte em conceitos filosóficos de Michael Foucault. 


O segundo é o musical Cantando na Chuva, dirigido por Gene Kelly e Stanley Donen. Esse filme, sob o pretexto de um inocente musical, adota a técnica da metalinguagem para contar a história da transição do cinema mudo para o falado.

Na linguagem do cinema, a chuva indica mudança. Cantando na mudança.

Nossa introdução foi grande, mas valeu a pena porque, agora, podemos fazer a pergunta central: Poderiam os videogames transpor a narrativa alegórica para a sua linguagem e introduzir mensagens subliminares ou críticas políticas absolutamente ocultas, apenas aguardando para serem descobertas?

É claro que sim! 

Ao mesmo tempo em que existem jogos como a popular franquia Metal Gear Solid, que aborda o perigo e as consequências da fabricação de armas nucleares como tema imediatamente identificável, há outros games que optam por introduzir mensagens por meio de alegorias que, geralmente, passam desapercebidas quando estamos preocupados em salvar o mundo ou resgatar a princesa. 

Primeiro, um exemplo simples e bem conhecido: Super Mario Bros. 3 é apenas uma peça de teatro. O sequestro da princesa Peach é "de mentirinha", os inimigos são meros atores e o cenário está lá montado em um palco. Você até pode observar os parafusos que seguram os blocos no cenário ou notar a sombra que fazem sobre a lona. 

Depois de décadas de discussão, o próprio criador do Super Mario confirmou a suspeita dos fãs.

Porém, de forma bem mais ambiciosa do que Super Mario, a série Donkey Kong Country pode esconder os seus mistérios e nos alertar para a possibilidade de extinção da raça humana. Sim, isso mesmo.

Desenvolvido originalmente pelos ingleses da Rareware, sob a supervisão da Nintendo, Donkey Kong Country ganhou três jogos no Super Nintendo que, até hoje, rendem sorrisos para aqueles que jogaram a trilogia nos anos 1990. 

Três dos melhores jogos de todos os tempos. Obrigado, Rare <3

No primeiro Donkey Kong Country, a missão dos parceiros Donkey e Diddy é resgatar as diversas pencas de bananas que foram roubadas pelo vilão King K. Rool e sua trupe de crocodilos apelidados de Kremlings.

Uuuuh... ba-na-na

Ambientando na DK Island, uma ilha com o formato do rosto do gorilão, a primeira aventura da franquia possui ambientes predominantemente bucólicos, mas que dão sinal de algum evento misterioso: as florestas, selvas, lagos, cavernas são, aos poucos, sucedidos por minas de trem abandonadas, cavernas com iluminação artificial e até uma indústria.

Spoiler: Não é a Amazônia

A pergunta é inquietante: quem teria construído a tecnologia presente nesta ilha ficcional? Os gorilas ainda são primitivos e moram em casas na árvore e parecem, portanto, muito distantes da industrialização. Os Kremlings, igualmente, ainda são bárbaros e sua tecnologia própria se resume a objetos construídos com madeira.

A embarcação do King K. Rool é construída com cordas e madeira.

A resposta pode ser bem desagradável: A tecnologia parece pertencer aos seres humanos, e Donkey Kong Country aparenta ser ambientado em um futuro distópico, onde a raça humana foi extinta ou suprimida por um evento cataclísmico.

Monarquia, Grandes Navegações e Revolução Industrial?

Se você gosta de cinema, provavelmente já viu essa história antes: as semelhanças com a narrativa de Planeta dos Macacos são inegáveis.

Planeta dos Macacos tem uma das reviravoltas mais memoráveis da história do cinema.

Criada pelo autor francês Pierre Boulle, Planeta dos Macacos conta a história de um astronauta que sobrevive a uma missão espacial e aterrissa em um planeta, supostamente, apenas similar à Terra, onde uma raça de macacos falantes domina e escraviza os seres humanos. No final do filme e, com a licença de um spoiler de uma obra de 1968, descobrimos que o planeta em questão é, em verdade, o nosso.

"Same energy"

Em apertada síntese, as sequências de Planeta dos Macacos explicam o evento cataclísmico com suporte em uma terapia genética experimental - ALX - 112, que empregava um vírus para o tratamento de Alzheimer. Essa tecnologia, porém, utilizava primatas como cobaias, fazendo com que as suas proles nascessem superdesenvolvidas. Já, nos humanos, descobre-se que o vírus tem efeito reverso graças aos anticorpos...

Por sua vez, em Donkey Kong Country, o evento cataclísmico parece ter outra causa que só foi trazida à baila nos últimos dois jogos desenvolvidos pelos texanos da Retro Studios. 

Após um hiato de 16 anos, Donkey Kong Country Returns foi lançado para o Nintendo Wii em novembro de 2010, trazendo como palco, novamente, a DK Island, com uma notável diferença: as calotas polares não fazem mais parte da paisagem.

DK Island sem as calotas polares... querem nos dizer algo?

Nesse episódio, também saíram os inimigos Kremlings e fomos apresentados à Tribo Tik Tak, nascida de uma misteriosa erupção vulcânica no topo da ilha. 

Uma das paisagens de Returns exibe um Wiimote, controle por movimento lançado em novembro de 2006.

Quatro anos depois, em fevereiro de 2014, a Nintendo publicou a sequência de Returns, chamada Donkey Kong Country: Tropical Freeze (DKCYF), lançada originalmente para o Wii U e remasterizada para o Nintendo Switch em 2018. E o mais recente título foi o escolhido para trazer as pistas que nos alertam para nosso trágico destino. 

Snowmads: os vilões de Tropical Freeze, mas talvez não tão vilões assim...

Na história de DKCTF, um grupo de vikings árticos chamados Snowmads estão navegando à procura de outras ilhas para colonizar até que avistam um balão voando e a Ilha Donkey Kong. Em seguida, o líder desse grupo usa seu berrante para evocar um dragão de gelo que congela o local e arremessa os gorilas para outras ilhas bem distantes de seu lar.

A ilha onde a aventura se inicia em Tropical Freeze

Para ajudar a compor os mistérios sobre a narrativa escondida, Tropical Freeze é o jogo da série mais insistente na referência aos criadores da tecnologia das ilhas. Suas paisagens contêm resquícios da civilização humana, como aviões, submarinos, moinhos, correias, televisões e até janelas de vidro transparente.

Em tradução livre: Caramba, fomos atingidos pelo triângulo das Bermudas ou algo assim? Você vê todos aqueles destroços retorcidos por aí?

E muitos desses elementos já são apresentados durante o primeiro cenário, que possui um nome, digamos, bem peculiar: "Lost Man"grooves... Sacou? 

Eu também, Capitão América.

Não obstante, assim como apenas as sequências de O Planeta dos Macacos explicaram a decadência dos homo sapiens, Tropical Freeze foi o jogo escolhido para fornecer algumas pistas que podem explicar o evento cataclísmico que culminou no desaparecimento do ser humano.

Está preparado para algumas perguntas? 

1) Qual evento destrutivo levaria animais árticos a migrarem para outras regiões à procura de sobrevivência? 

2) Qual evento cataclísmico leva o resfriamento temporário de regiões tropicais devido ao derretimento de calotas polares? 

3- O que a emissão de CO2 tem a ver com o efeito estufa?

4- O desmatamento de áreas naturais contribuiu para o desequilíbrio das temperaturas e dos regimes de chuva?

Confesse: você se lembra da música dessa fase. 

No sentir deste colunista, Tropical Freeze não é uma parábola sobre a destruição da nossa civilização, mas, sim, sobre a autodestruição do ser humano pelo aquecimento global ocasionado pelo uso irracional dos recursos naturais. E a possível mensagem que a Nintendo, Rareware e Retro Studios quiseram nos transmitir tem muito prestígio entre as hipóteses científicas.

O chamado Paradoxo de Fermi consiste na aparente contradição existente entre as altas probabilidades de existência de civilizações extraterrestres e, por outro lado, a falta de evidências sobre essas civilizações. 

Uma das possíveis explicações apresentadas por aqueles que assumem que a vida extraterrestre existe é o chamado "Grande Filtro": em algum momento na história da civilização, existe uma espécie de barreira improvável ou impossível de se passar porque a vida inteligente tende a se autodestruir. 

Este é o argumento que diz que civilizações tecnológicas geralmente destroem a si mesmas antes ou pouco depois de desenvolver tecnologias de rádio e viagem espacial. Entre as causas para a nossa ruína estão as guerras nucleares (como em Dr. Fantástico), contaminação acidental (Planeta dos Macacos) ou mesmo uma catástrofe malthusiana após a deterioração da ecosfera de um planeta, o que, tudo indica parece ser a incrível, macabra e aterrorizante história de Donkey Kong Country. 

Apesar da complexidade em enxugar a presente teoria aqui disposta, espero que os leitores desta coluna possam ter, ao menos, percebido que, assim como qualquer outra obra artística, os videogames não só podem, como realizam com primor a mágica da alegoria como recurso narrativo.  

Pode ser que aquele seu jogo favorito tenha muito mais a apresentar do que uma simples história linear e boba. 

Até a próxima! 

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